terça-feira, 28 de junho de 2011

Projecto Sicar - Astúrias (cont.)

2.2. De que estamos a falar?
        Esclarecendo conceitos, definindo realidades

Consideramos importante estabelecer um padrão conceptual sobre alguns termos utilizados habitualmente no debate sobre a prostituição. Assim, procuramos definir alguns conceitos, tais como: tráfico de pessoas, tráfico de migrantes, prostituição, etc.

 No que se refere à definição de Tráfico, referimo-nos ao Protocolo elaborado pelas Nações Unidas para prevenir e sancionar o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças (Palermo 2000) e cujos elementos essenciais compreendem:

·         Acções: recrutamento e transferência/movimento da pessoa;

·         Meios: utilização de ameaças, uso da força ou outras formas de coacção, rapto fraude, engano, abuso de poder ou da situação de vulnerabilidade…;

·         Fins: com fins de exploração (exploração sexual, trabalhos ou serviços forçados, escravatura, servidão ou extracção de órgãos).

É necessário que se verifiquem estes três elementos para concluir que nos encontramos perante uma situação de tráfico.

No que diz respeito à Prostituição, geralmente, tende a ser entendida como a actividade na qual se mantêm relações sexuais com outras pessoas, a troco de dinheiro. A prostituição pode ser exercida de maneira autónoma (por decisão própria / gestão própria), ou bem, determinada por uma terceira pessoa (suposta de lucro alheio e/ou exploração sexual).

Uma modalidade deste fenómeno é a Prostituição com recurso à coacção ou forçada, com recurso à violência, intimidação ou engano; abuso de poder ou da vulnerabilidade ou necessidade da vítima, para o início ou o exercício continuado de uma pessoa na prática da prostituição, com a finalidade de daqui obter lucro alheio (lenocínio).

Esta actividade de carácter delituoso é perseguida penalmente na nossa legislação e, geralmente, é uma prática reprovada internacionalmente.

 No que concerne ao Tráfico ilícito de Migrantes, este tem-se vindo a definir como: o favorecimento da entrada ilegal de pessoas, isto é, transgredindo as formalidades impostas pelo Estado receptor, com o fim de obter lucro alheio.

 Na actualidade é possível encontrar muitos elementos comuns entre o tráfico, a prostituição coerciva ou forçada e, inclusivamente, entre o tráfico e o fluxo ilegal de migrantes. Tal facto torna muito complexa a qualificação de uma ou outra realidade na prática, especialmente na percepção social dos dois fenómenos.

No entanto, é fundamental a sua diferenciação para evitarmos posturas simplificadas, que nos desfoquem a visão da realidade eminentemente plural.


3. Como é que falamos?
     Em prol de uma linguagem inclusiva e não estigmatizante

O nosso interesse como Equipa é adoptar formas de actuar que não produzam – nem nos seus discursos, nem nos seus métodos – a vitimação, a marginalização, os juízos de valor ou a estigmatização das mulheres.

Por este motivo, detemo-nos no valor e na importância da linguagem, na construção do imaginário social sobre a prostituição e as mulheres: como nomear, que expressões utilizar, que imagens transmitir.

Para isso consideramos alguns princípios essenciais:

·      Visibilidade: a prostituição existe na nossa sociedade nas suas diferentes manifestações; há pessoas - maioritariamente mulheres - que a exercem e a vivem. Isto há-de ser dito para que a própria sociedade possa assumir com responsabilidade a reflexão e a elaboração de propostas sobre esta realidade.

·      Integração: isto quer dizer que a nossa linguagem não há-de contribuir para perpetuar a exclusão das mulheres. Referir-se às mulheres como agentes passivos, ainda que seja em prol do seu “benefício”, constitui marginalização e gera uma perspectiva que, por sua vez, não favorece processos de crescimento e aceitação pessoal.

·      Inclusão: parece-nos que isto só é possível recorrendo a um determinado tipo de linguagem: respeitadora, dignificante e que contribua ao empowerment da mulher, bem como à criação da consciência da sua condição de mulher e cidadã.

Assim, pelos motivos expostos neste ponto e em todo o documento, as destinatárias do nosso programa são nomeadas com expressões como: “mulheres que exercem a prostituição”, “mulheres em prostituição”, “mulheres em contexto de prostituição”.

 Também significamos e diferenciamos a realidade “mulheres vítimas de tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual”.

Na actualidade existem acções diversas que têm como destinatárias mulheres que exercem a prostituição. Assim, pareceu-nos conveniente perguntar-nos sobre aquilo que nos caracteriza e identifica a nossa prática quotidiana de apoio social a mulheres que exercem a prostituição. Depois de tudo o exposto anteriormente, podemos assinalar algumas opções metodológicas básicas que atravessam a proposta de intervenção do nosso programa:

·      Integralidade e personalização: centramo-nos na mulher e não na prostituição entendida como o “problema”; trabalhamos a partir de uma visão integral da pessoa procurando “libertar nela o que a impede de continuar a crescer”.

·      Normalização perante a problemática ou a vitimação. Consideramos essencial potenciar a autonomia e o “empowerment“ das mulheres, numa perspectiva de inclusão social.

·      Acompanhamento: na nossa forma de estar procuramos um estilo mais próximo ao “ser com” que ao “fazer por”.

·      Trabalho em rede: entendendo-o não como estratégia mas como princípio inerente à acção desenvolvida. Trabalhar em colaboração com outras entidades e recursos, permite-nos reconhecer que nem estamos sós, nem somos os únicos; que a nossa acção se vê complementada pelo trabalho de outras muitas pessoas e entidades com fins semelhantes.

·      Especialização e Diversidade: consideramos que somos um programa específico, não generalista; isto é, um programa que está pensado e dirigido a mulheres que exercem a prostituição, incluindo as muitas especificidades e realidades que lhe possam estar inerentes.

·      Atenção especializada: prestamos uma atenção específica às mulheres vítimas de tráfico e de prostituição forçada, por se tratar de duas realidades mais visíveis dentro da prostituição e que supõem uma situação de máxima vulnerabilidade e violação dos direitos fundamentais.

·      Profissionalismo: é fundamental garantir a capacitação e o compromisso da equipa técnica como tarefa a ser conseguida. Deste modo, para além da configuração do carácter multidisciplinar, é importante poder contar com pessoas complementares que possuam capacidades e atitudes consonantes com as características do trabalho a desenvolver; que se identifiquem com os fins da entidade, com as características do programa concreto e tenham capacidade de adaptação e de trabalho em equipa.

·      Trabalho em equipa: o vínculo e a relação estabelecida entre as mulheres e os profissionais é um dos eixos fundamentais da nossa acção. A equipa é espaço de reflexão, diálogo, partilha de ideias e toma de decisões conjunta, partindo da experiência pessoal e profissional.

·      Transformação: toda a nossa acção há-de ser pautada por um princípio de mudança, que dê um contributo na denúncia e transformação das estruturas que perpetuam a desigualdade.

·      Participação: acreditamos e apostamos na co-responsabilidade e participação das próprias mulheres. Facilitamos a sua participação nas tarefas de reflexão, análise, construção de estratégias de intervenção e avaliação de acções e projectos. Capacitamos e formamos as mulheres, para que se possam tornar referências positivas para outras mulheres. Perseguimos o desafio de continuar a implementar estas e outras estratégias concretas que facilitem o pensar e o construir com elas.


Fonte: "Sicar-Asturias: nuestra manera de ver las cosas"

domingo, 26 de junho de 2011

Ao celebrar 75 anos da Presença Adoradora em Portugal...




É tempo de...


Fazer memória da História de Salvação que Ele tem realizado através de nós!

Fazer presente todas as Irmãs, Jovens-Mulheres, Crianças, Leig@s que nos precederam!

Agradecer os caminhos de Adoração-Libertação percorridos!

Sentir hoje, novamente, o Envio: "Ide.. fazei-o em Minha Memória"!



sexta-feira, 17 de junho de 2011

Strauss-Kahn: uma metáfora das práticas do FMI

O leitor ou leitora pensará que foi uma tragédia o facto do Director-gerente do FMI, Strauss-Kahn, ter dado asas ao seu vício, a obsessiva busca por sexo perverso, nu, ao correr atrás de uma camareira negra na suite 2806 do hotel Sofitel em Nova York, até a agarrar, forçando-a a praticar sexo, com detalhes que a Promotoria de Nova York descreve em detalhes e que, por decência, dispenso-me de descrever. Para ele não era uma tragédia. Era uma vítima a mais, entre outras, que fez pelo mundo fora. Vestiu-se e foi directamente para o aeroporto. O cómico foi que, o imbecil, esqueceu-se do telemóvel na suite e assim pôde ser preso pela polícia ainda dentro do avião.

A tragédia ocorreu não com ele, mas com a vítima que ninguém se interessa por saber. O seu nome é Nafissatou Diallo, da Guiné, africana, muçulmana, viúva e mãe de uma filha de 15 anos. A polícia encontrou-a escondida atrás de um armário, a chorar e a vomitar, traumatizada pela violência sofrida pelo hóspede da suite, cujo nome nem sequer conhecia. A maior parte da imprensa francesa, com cinismo e indisfarçável machismo, procurou esconder o facto, alegando até uma possível armadilha contra o futuro candidato socialista à Presidência da República. O ex-ministro da cultura e educação, Jacques Lang, de quem se poderia esperar algum esprit de finesse, com desprezo, afirmou: "Afinal não morreu ninguém". Que deixe uma mulher psicologicamente destruída pela brutalidade do Mr. Strauss-Kahn não conta muito. Finalmente, para essa gente, trata-se apenas de uma mulher e africana. Mulher conta alguma coisa para este tipo de mentalidade atrasada, senão para ser mero "objecto de cama e mesa"?


Para sermos justos, temos que ver este facto a partir do olhar da vítima. Aí dimensionamos o seu sofrimento e a humilhação de tantas mulheres no mundo que são sequestradas, violadas e vendidas como escravas do sexo. Só uma sociedade que perdeu todo o sentido de dignidade e se brutalizou pela predominância de uma concepção materialista de vida que faz de tudo objecto e mercadoria, pode possibilitar tal prática. Hoje, tudo se tornou mercadoria e ocasião de ganho, desde os bens comuns da humanidade, privatizados (água, solos, sementes), até órgãos humanos, crianças e mulheres prostituídas. Se Marx visse esta situação ficaria seguramente escandalizado, pois para ele o capital vive da exploração da força de trabalho mas não da venda de vidas. No entanto, já em 1847 na Miséria da Filosofia intuía: "Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os homens haviam considerado inalienável se tornou objecto de troca, de tráfico e podia alienar-se. O tempo em que as próprias coisas que até então eram comunicadas, mas jamais trocadas, dadas, mas jamais vendidas: adquiridas mas jamais compradas, como a virtude, o amor, a opinião, a ciência e a consciência, em que tudo passou para o comércio. Reina o tempo da corrupção geral e da venalidade universal....em que tudo é levado ao mercado".

Strauss-Kahn é uma metáfora do actual sistema neoliberal. Suga o sangue dos países em crise como a Islândia, a Irlanda, a Grécia, Portugal e agora a Espanha como fizera antes com o Brasil e os paises da América Latina e da Ásia. Para salvar os bancos e obrigar a saldar as dívidas, arrasam a sociedade, desempregam, privatizam bens públicos, diminuem salários, aumentam os anos para as aposentadorias, fazem trabalhar mais horas. Só por causa do capital. O articulador destas políticas mundiais, entre outros, é o FMI, do qual Strauss-Kahn era a figura central.

O que ele fez com Nafissatou Diallo é uma metáfora daquilo que estava a fazer com os países em dificuldades financeiras. Mereceria cadeia não só pela violência sexual contra a camareira mas muito mais pelo abuso económico ao povo, que ele articulava a partir do FMI. Estamos desolados.


Leonardo Boff

Teólogo/Filósofo

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Projecto Sicar - Astúrias

Irmãs Adoradoras, Gijón

Programa de apoio social / integral a mulheres que exercem a prostituição


1.    Princípios: Relação presente, passado e futuro

Este Projecto pretende dar continuidade à intuição e ao desejo de Sta. Maria Micaela. Ela, Micaela Desmasières, fundadora das Irmãs Adoradoras, começou no ano de 1844 o primeiro dos seus projectos, dirigido a oferecer apoio e formação às mulheres que, naquela altura, exerciam a prostituição. A perspectiva educativa da sua acção, assim como o modo de se situar e entender estas mulheres supôs, na sua época, a abertura de um caminho novo e incompreensível para muitos.
Actualmente, a própria conceitualização da prostituição, assim como o contexto social, cultural e económico, e o papel que as mulheres nele desempenham, não só mudou mas atingiu escalas mundiais.

Alguns dos princípios que hoje inspiram a nossa missão e guiam a nossa acção quotidiana, encontram a sua origem na forma como Micaela entendia a pessoa, e no seu estilo de actuar que denominava “pedagogia do amor”.

Destacamos alguns dos nossos princípios de actuação:
·  Colocar as mulheres no centro da nossa acção;
·  Considerar as mulheres como sujeitos e agentes activos da sua própria vida;
·  Respeitar a liberdade individual e a voluntariedade da mulher, promovendo uma acção de apoio e acompanhamento em qualquer situação, circunstância e interesse;
·  Acolher cada mulher de forma incondicional e trabalhar para reduzir o estigma e os seus efeitos na pessoa.

Ao analisarmos o nosso programa sentimos também alguns desafios:
·  Fazê-lo com a mesma paixão de Micaela;
·  Construir linhas pedagógicas que promovam o crescimento pessoal, com respeito e liberdade;
·  Não esquecer que a missão fundamental é promover os direitos das mulheres;
·  Promover uma aposta clara em acompanhar, e não em dirigir.


2.    Algumas questões de fundo: Pressupostos básicos               

 Actualmente existe um debate social acerca da prostituição, que se posiciona entre duas correntes feministas contrapostas: abolicionista e pró-direitos.

O feminismo abolicionista entende a prostituição – em todas as suas modalidades – como uma forma de escravidão, exploração e violência contra as mulheres, negando a possibilidade da prostituição ser exercida de forma voluntária. O abolicionismo defende um modelo de despenalização da prostituição, considerando a mulher que se prostitui como vítima e, por isso, objecto de protecção. Ao mesmo tempo, se tipifica e sanciona o proxenetismo e a demanda, isto é, o cliente. Como paradigma deste modelo, temos o exemplo da Suécia.

Por outro lado, o feminismo pró-direitos parte da existência de um sistema de dominação patriarcal, no qual se utiliza o estigma “puta” como mecanismo de subordinação e controlo sobre a conduta das mulheres. Esta perspectiva aborda a instrumentalização da sexualidade como uma forma de exercer a liberdade da mulher, com o requisito do seu consentimento e libertando-a de um tratamento vitimista. Em termos legislativos, o movimento pró-direitos defende a legalização da prostituição, atribuindo a esta actividade um carácter laboral e outorgando direitos e obrigações às pessoas que a exercem. Do ponto de vista pragmático é a legislação holandesa a que mais se aproxima deste modelo.

Ainda que sejam claras as grandes diferenças entre as duas correntes, têm pontos de encontro: uma e outra defendem a necessidade de perseguir o tráfico e a prostituição forçada, e rejeitam modelos proibicionistas e “regulamentistas” que prejudicam os direitos das mulheres que exercem a prostituição.

Neste processo de construção teórico-prático, não sentimos a necessidade, como equipa, de identificar-nos com nenhuma das posições vigentes, no entanto, procuramos resgatar o melhor que cada uma pode dar a este debate. Constatamos que a realidade é complexa e dinâmica, por isso consideramos mais acertado manter uma atitude flexível que nos permita detectar as arestas da realidade para podermos responder melhor às suas questões e exigências. Assim, acreditamos que é possível construir posições mais integradoras que nos permitam caminhar, encontrar pontos convergentes e unir esforços no trabalho a favor dos direitos das mulheres, contando com as próprias mulheres.

2.1.   De quem é que estamos a falar?
      Mulheres protagonistas e participantes

Quando se fala de prostituição é habitual ouvirem-se histórias ou testemunhos de mulheres que ilustram cada um dos argumentos, a favor ou contra. Por isso, mais que falar de prostituição, preferimos falar de mulheres que se prostituem, porque, é na vida que compartilhamos com elas, que vamos aprendendo a sentir-nos co-responsáveis, e aí as posições flexibilizam-se e adquirem contornos próprios.

Na nossa perspectiva, existem alguns elementos-chave, que nos podem ajudar a compreender melhor quem são e como vivem as mulheres que exercem a prostituição.

Estes elementos são decisivos na configuração do nosso programa:
  ·  Entendemos que a prostituição continua estreitamente ligada à desigualdade de oportunidades;
  ·  A prostituição é utilizada como estratégia de vida por muitas mulheres, especialmente as mulheres migrantes;
  ·  Observamos outros elementos de interesse nas diferentes formas de vivência da prostituição: mulheres coagidas ou pressionadas por terceiros; mulheres que, devido às suas condições não têm condições de procurar outras possibilidades; mulheres que, mesmo com outras oportunidades, decidem dedicar-se à prostituição.

Negar uma destas possibilidades é negar a experiência de outras tantas mulheres, e a possibilidade de as acompanhar e de caminhar com elas.


Continua...


Fonte: "Sicar-Asturias: nuestra manera de ver las cosas"